Divagações: Crash

Nada como o tempo para acalmar ‘polêmicas’ e fazer cada coisa se encaixar em seu devido lugar. Lembro bem de estar assistindo a cerimônia ...

Nada como o tempo para acalmar ‘polêmicas’ e fazer cada coisa se encaixar em seu devido lugar. Lembro bem de estar assistindo a cerimônia do Oscar e perceber a surpresa de todo mundo com a vitória de Crash. Competindo contra Brokeback Mountain, Capote, Good Night, and Good Luck e Munich, realmente, aquilo não parecia fazer sentido. Ao mesmo tempo, era bom ver ser premiada uma produção com uma narrativa diferente e uma temática tão pesada e atual – ainda que a abordagem fosse questionada.

Mas vamos aos pontos principais. Crash traz diversas histórias simples que acabam se cruzando de alguma maneira, lidando com diferentes personagens, enquanto eles destilam e sofrem preconceitos. Um casal branco e rico (Brendan Fraser e Sandra Bullock) tem seu carro roubado por dois jovens negros (Ludacris e Larenz Tate) que acreditam estarem, de alguma forma, lutando ‘contra o sistema’. Um pai de família de origem hispânica (Michael Peña), que engole poucas e boas no trabalho, acabou de se mudar com sua família após um episódio de violência. Um policial (Matt Dillon) tem dificuldades em cuidar de seu pai doente e desconta suas frustrações em uma enfermeira (Loretta Devine) e em uma mulher que aborda no trânsito (Thandie Newton), ambas negras. Uma médica de origem persa (Bahar Soomekh) tenta acalmar seu pai (Shaun Toub), um imigrante que não sabe inglês e está desesperado após constantes invasões a sua loja. Um diretor de televisão negro (Terrence Howard) tem que obedecer um produtor branco que dá orientações sobre como um jovem negro deve falar e agir. Um jovem idealista que acabou de entrar na força policial (Ryan Phillippe) tem que se submeter a uma situação vexatória após tentar expor o comportamento racista de um colega. Uma mulher coreana (Alexis Rhee) está desesperada no trânsito, tentando chegar ao hospital para onde seu marido, atropelado na noite anterior, foi levado. Um investigador negro (Don Cheadle), que está sendo pressionado por sua mãe a encontrar o irmão desaparecido, tem o histórico policial desse mesmo irmão sendo usado como parte de um ataque contra sua dignidade. E por aí vai.

Um ponto importante a trazer aqui é que, com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, Crash tem pouco tempo para desenvolver seus personagens. Cada um deles retrata um estereótipo levemente modificado, permitindo saídas inusitadas para as situações em que eles se encontram ou gerando decepção quando eles se rendem ao que é ‘esperado’ deles. À medida que as histórias se cruzam e somos direcionados a diferentes conclusões – a maior parte deles envolvendo situações-limite –, o filme pende para um sentimento de esperança, mas que é propositalmente muito pequeno e restrito.

Escrito e dirigido por Paul Haggis, que estava vivendo seu auge em Hollywood após o roteiro de Million Dollar Baby, Crash é uma produção corajosa por natureza e repleta de boas intenções. Mas, como é sabido, o inferno está repleto disso. O filme cai facilmente em muitas de suas próprias armadilhas e, sob olhares atentos, pode ser considerado de racismo em diversos momentos. Ao trabalhar com personagens tipificados e trazer uma temática que contraria essa própria abordagem, esse tipo de resultado é absolutamente esperado e faz parte da discussão que o próprio longa-metragem quer levantar.

Assim, treze anos após sua estreia, a produção continua tão polêmica quanto no momento de seu lançamento e talvez tenha se tornado ainda mais relevante. Com um bom ritmo e uma narrativa que prende até mesmo quem já sabe o que vai acontecer (a expectativa às vezes é pior do que a surpresa, diga-se de passagem), Crash pode não ser tão importante para o mundo cinematográfico quanto seus concorrentes naquela longínqua cerimônia do Oscar. Mesmo assim, esse é um filme que merece ser visto e discutido.

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